Capítulo III

Shot017"Não espere pelo Juízo Final: ele ocorre diariamente." (Albert Camus)

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Trinta anos se passaram desde aquela derradeira conversa.

Sir William Delbury era um dos homens mais ricos e respeitados do Império Britânico: possuía indústrias e era acionista de uma das maiores casas bancárias do Reino Unido.

Havido como um homem recatado e caridoso, era conselheiro de várias casas de saúde de Londres. Presidia o conselho do maior hospital público da Inglaterra, o Saint Paul Public Hospital, cuja ala infantil, as suas expensas, mandara construir e mantinha.

Doava, mensalmente, consideráveis quantias para obras de caridade.

Privava da amizade e da intimidade de outro respeitável cavalheiro do Reino, Lord Robertson Mulney, médico que, aos 45 anos, dedicara-se integralmente, com sua esposa, à caridade.

Lord Mulney era responsável pela ala infantil do Saint Paul, médico e conselheiro particular de Sir William.

O pacto que fizera William, na juventude, era um segredo só seu. Jamais o repartiu com alguém.

Era um homem solitário. Jamais se casou. Achava que se amasse alguém de novo, correria o risco de ter que entregá-la ao diabo, como preço.

Que maior preço poderia haver que ser o próprio algoz do ser amado? Ele já havia experimentado e sabia que nada poderia ser mais cruel.

Lord Mulney e sua esposa não haviam gerado filhos. De tudo faziam, desde o casamento, há 20 anos, para ter um herdeiro. Todos os recursos que a medicina possibilitava foram usados em vão.

Em uma tarde cinzenta na City. Sir William nunca vira Lord Mulney entrar-lhe na sala tão eufórico.

- Meu grande amigo! Você é o primeiro a saber: a Senhora Mulney está esperando um bebê!

- Lord Mulney! Deus os abençoe! Vossas preces foram ouvidas!

Sir William sentiu uma enorme felicidade pelo amigo e esposa. O desejo ardente dos dois se houvera realizado.

Voltou para casa, uma enorme mansão de 40 quartos na Dolcester Road, pensando que se a sua Gweneviere estivesse viva, já poderiam ter até netos. Mas o filho dos Mulney seria como um neto seu. Já se imaginava brincando com o bebê Mulney nos enormes jardins do seu castelo.

John Pincherbill, o fiel mordomo do Castelo Delbury, avisou Sir William que o jantar estava posto.

William sempre sentava à mesa sozinho, exceto quando Lord Mulney e esposa o acompanhavam na ceia.

A enorme mesa pareceu mais aconchegante aquela noite. Sir William imaginou o pequeno Mulney à cadeira ao lado da sua.

- Com sua licença, Sir.

- Pois não John?

- Um cavalheiro à porta diz que lhe precisa falar e pede a gentileza de o senhor lhe permitir acompanhar-lhe no jantar.

- Não espero ninguém John. De quem se trata? Que nome lhe declinou para anunciar?

- Não me declinou o nome, Sir. Eu o avisei que o senhor não aguardava ninguém e estava à mesa, mas o cavalheiro insistiu e disse que o senhor o conhece.

Sir William procurou na mente quem poderia ser, e não encontrou, de pronto, alguém que lhe poderia visitar, sem avisar, àquela hora.

- Faça-o entrar e o acomode na biblioteca. Estarei lá em 20 minutos.

Ao sorver o vinho, não mais que de repente, como um raio, um pensamento partiu-lhe a mente: William tentou recordar as feições daquele cavalheiro que vira somente três vezes, a última vez há 40 anos e, desde então, jamais lhe pronunciara novamente o nome.

Não mais conseguiu cear. Levantou-se. Foi até o lavabo. Olhou-se no espelho, tentado enxergar o jovem Delbury de 40 anos atrás, no frescor dos seus 25 anos. Mudara muito desde então: as rugas marcavam-lhe a suave sisudez do porte.

Deixou o lavabo, rumo à biblioteca. Ao passar pelo átrio do palácio, instintivamente, olhou a chapeleira: uma bengala de fino cedro, cravejada de brilhantes, e uma cartola, descansavam solenes, a compor a estética fria do salão.

Sir William respirou resignado e entrou na biblioteca: ao fundo com um livro na mão, o cavalheiro, que em nada houvera mudado desde o último encontro, rumou para cumprimentá-lo.

- Como você está, William? Deixe-me observar que você tem uma bela biblioteca. Já o leu? (estendendo com a mão esquerda, o livro que folheava).

- Estou bem. A Divina Comédia... Deve-lhe parecer familiar, não? A propósito, nunca me disse o seu nome.

- Tenho vários nomes e faces, William. Nomes, todavia, não são importantes e sim as atitudes e os desejos daqueles que me procuram. Você sempre costumava me chamar por um. Pode continuar a usá-lo.

- O que deseja agora? Custou a vir. Achei que me tinha esquecido.

- Jamais esqueço algo. É que o tempo para mim tem uma grandeza diferente que o mesmo tempo para você. O que é um segundo para uns, pode ser a eternidade para outros.

- Vejo que manteve a sua juventude.

- A minha juventude é o preço que sempre cobro. Para que eu me mantenha sempre jovem, é necessária certa compensação. Como eu lhe disse, para tudo há uma forma de compensação. Eu estou incluído neste tudo.

- O que deseja? O que lhe devo dar?

- Os Mulney esperam um filho, não é William?

Sir William Delbury sentiu o mundo faltar-lhe aos pés. Só houvera sentido algo igual, quando viu, há 40 anos, sua amada sem vida.

Caiu na cadeira, esmorecido. Fitou o cavalheiro, que, impávido e sereno, fitava-lhe. Lembrou o olhar que vira quando estava com a sua amada morta nos braços.

- Por favor, qualquer outra coisa. Não pode fazer nada com os Mulney. Eles sempre foram o exemplo da fé divina. Sempre se portaram como fiéis servos de Deus. Deus os recompensou com um filho ardentemente desejado.

- Por que só a Deus se brinda o que ardentemente se deseja? Não lhe passa na mente que tudo aquilo que é ardentemente desejado, pode ser, também, brindado a mim?

- Você jamais poderia entrar no coração dos Mulney.

- Olhe para você. Alguém poderia afirmar que eu estou em seu coração? Que as suas mãos que distribuem caridade ao mundo, apertaram as minhas e selaram comigo um acordo para que tudo o que você tem fosse providenciado? Olhe para mim. Alguém poderia afirmar que eu arrebatei a alma da sua amada de um modo tão cruel? Insisto: quem poderia acreditar que eu, através de você, tenho feito 40 anos de caridade, salvado vidas, matado fome e sede e semeado felicidade? Não é a minha missão plantar miséria, fome e desgraça? Não deveria o papel que eu lhe proporcionei fazer, ter sido proporcionado por Deus? Não cobra, Ele também, um preço por tudo que entrega?

- Onde queres chegar, Satanás? (Sir William titubeara um pouco ao pronunciar aquele nome. Era a primeira vez que admitia, através de um nome, que conversava com o demônio).

- Quero dizer que podemos, eu e Ele, sermos faces opostas de um mesmo ego. Não semeou Ele desgraça no mundo? Não transformou a mulher de Ló em sal? Não destruiu cidades, não afogou gerações? Eu não te dei fortuna? Não tenho dado fortunas aos outros? E não te dei o livre arbítrio de dispor disto como te aprouvesse? Meu caro William, assim como pagarias à Ele, deves pagar a mim. Fizeste um trato. Deves cumpri-lo.

- E se eu não pagar o preço que me cobras? Ele é muito alto para mim.

- Não ouse quebrar um pacto feito comigo. Pague o preço ou a conta ficará mais cara ainda.

- O que poderia ser mais caro para mim que aquilo que tu já levaste e agora quer levar?

- Há sofrimentos que o homem não imagina que possam existir. Só o tempo poderá despertar a realidade daquilo que o sofrimento pode ser. O mesmo tempo que faz esquecer, pode se tornar uma eterna tortura de lembrar.

- O que quer, afinal, que eu faça?

- Quero o bebê Mulney, no dia em que ele nascer. Mate-o neste dia. Decepe-lhe a cabeça do corpo. Traga-a para cá e me entregue. Estarei esperando. Lembre-se, William: no mesmo dia em que nascer.

- Jamais farei isto. Já que és tão poderoso, por que não fazes estas coisas você mesmo? Por que precisas ficar fazendo pactos com os homens?

- Por que Ele, que dizem ser mais poderoso que eu, precisa de instrumentos para realizar seus desígnios? Por que Ele precisa ter servos que Lhe sirvam e eu não? A verdade é que eu e Ele não sabemos muito lidar com as coisas terrenas. Se eu tiver que fazer o que lhe peço, mais cabeças poderão ser decepadas, além da do bebê Mulney. Por isto preciso de você para fazer o serviço. Preciso ir, William. No dia em que nascer. Nem um dia depois.

William apertou os olhos com as mãos, para tentar encontrar na escuridão que se fazia em sua mente, uma luz que o guiasse a uma saída.

Ao abaixar os braços o cavalheiro havia desaparecido. A voz, todavia, ainda lhe ecoava ao juízo: “nem um dia depois”.

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