Capítulo V

Shot015  "O destino do homem não está no futuro e sim no passado." (Havelock-Ellis)

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O Big Ben soou onze vezes. Em uma hora acabaria o dia.

Sir William vagava pela ponte do Parlamento, a esmo. O vento frio do Tamisa lhe golpeava o corpo cansado, mas ele não parecia sentir.

Recordava a sua juventude na Melborne Street e as noites no The Cat.

Acenou a um carro que passava. Entrou e pediu que o chofer o levasse à Lancaster Road, na altura do 1003.

De certa distância viu a placa verde musgo, em cujo canto direito se via, pintado, um gato sorrindo, com uma enorme cauda vermelha.

Há muito tempo ele não entrava no The Cat of the Red Painted Tail Pub. Ao olhar de fora, nada lhe parecia ter mudado. Entrou.

Era por volta de 02h30min de uma madrugada fria, quando Sir William saiu do The Cat: excedera-se na bebida.

A Lancaster Road estava deserta. Ele cambaleou rumo à Melborne. Ao chegar na esquina, onde deveria dobrar, tropeçou na sarjeta:

- Diabo!

Ao ouvir a própria voz ecoar na madrugada, gargalhou. Repetiu o nome, desta vez mais alto. Parava e gargalhava ao ouvir seu próprio eco na solidão da noite londrina.

Parou em frente ao sobrado que outrora lhe servira de morada. Tentou abrir o portão. Estava fechado. Com esforço pulou o portão e forçou a porta do apartamento.

Mãos o seguraram com firmeza. Virou-se: era a polícia, que fora avisada pelos moradores haver um louco pelas redondezas. Reagiu à prisão, aos impropérios, dizendo-se rico e poderoso.

Pela manhã, ao sair da Delegacia do Distrito de Lancaster, a imprensa toda lhe estava à espera, cruel como sempre, ávida pelos fatos desprovidos das circunstâncias ou conjunturas que o deram causa e efeito.

Tudo que a imprensa queria era uma foto de um esfarrapado Sir William Delbury, o grande benfeitor de Londres, ao sair da delegacia onde passara a noite ébrio, por arruaça na Melborne Street.

Mesmo com uma vida dedicada à caridade, por ser um homem rico e influente em Londres, Sir William houvera feito inimigos na vida.

Ao escapar da multidão de jornalistas avistou Lord Mulney, que se ofereceu para acompanhá-lo até o Castelo Delbury. Fizeram todo o trajeto mudos. Ao saltar da limusine, Sir William perguntou se o bebê Mulney estava bem.

- Está ótimo. Ele e a mãe ainda estão no Saint Paul, mas devo levá-los para o Mulney’s Castle amanhã. Quer conversar sobre o que ocorreu, Sir?

- Não, prefiro descansar.

- Se precisar de mim, mande-me chamar.

William Delbury inspirou fundo. Com a expiração veio a frase que se prepara para dizer:

- Lord Mulney.

- Sim, Sir William?

- Não posso aceitar ser o padrinho do bebê Mulney, e jamais devo vê-lo. Nunca, entendeu?

- Não posso compreender, Sir William.

- Apenas aceite isto. Jamais me procure novamente. Corte-me da sua relação. Você está cortado da minha. Disto depende a vida do pequeno Mulney. Um bom dia, meu Lord.

Lord Mulney não conseguia pronunciar uma palavra. Continha, a custo, as lágrimas ao acompanhar, com o olhar, a silhueta do seu melhor amigo se distanciando dele rumo à entrada do Castelo.

Ao chegar aos seus aposentos, Sir William não se conteve e caiu em prantos. Adormeceu exausto. Acordou, por volta das 22h00min, com baques violentos à porta do quarto.

- Sir William! Uma tragédia está ocorrendo!

- Por Deus, o que há John?!

- O Saint Paul!

- O que há com o Saint Paul?!

- Está em chamas! A caldeira que servia a ala infantil estourou e o fogo se alastrou por todo o prédio!

Ao chegar ao quarteirão da Trepton Lidscore Square, onde se localizava o Saint Paul Hospital, Sir William pode ver a altura das chamas, que já se alastravam pelos prédios vizinhos, tendo já consumido toda a ala infantil e a parte norte do grande hospital.

Ele foi impedido pelos bombeiros de entrar nos escombros, e tentava, desesperadamente, desvencilhar-se, quando, no meio da multidão, avistou Lord Mulney a prantear, desesperado, o corpo queimado da Senhora Mulney e, ao lado, em uma manta, o corpo que ele julgou ser o do pequeno Mulney, enquanto duas pessoas tentavam convencê-lo a deixar que os levassem.

Sir William correu em direção ao amigo e, desesperado, abriu o manto à espera de ver o pequeno Mulney com vida.

Um senhor o tentou impedir. Ele abriu o manto e avistou o corpo do bebê. Faltava-lhe a cabeça. Algo, no incêndio a havia separado do corpo.

Sir William deixou-se cair ao solo. Seu coração secou. Não encontrava forças para prantear ou sentir. Sentiu que havia uma pedra enorme e pesada no seu peito.

Levantou-se e pegou o carro de volta para o Castelo Mulney. Ao chegar, John o avisou que aquele mesmo cavalheiro que lá estivera um dia, o esperava na biblioteca.

Sir William entrou e sentou-se. Não estendeu a mão quando o cavalheiro o cumprimentou.

- Eu lhe avisei, meu caro William. Não sabemos lidar corretamente com estas coisas, por isto sempre recorremos aos homens, para que nada fuja do controle. Eu também lhe avisei que não deveria ousar quebrar o pacto que fez comigo, pois o preço poderia ser maior que o efetivamente cobrado.

- Vá para o inferno, de onde veio, seu desgraçado!

- Você foi ao céu através de mim: no inferno agora está por suas próprias atitudes. Estas coisas são apenas estados de espírito.

- Estou farto da sua filosofia que tenta justificar a sua maldade e excluir a sua perversidade! Tudo que diz não passa de uma hipocrisia diabólica, uma armadilha para tentar me convencer da sua dualidade!

- Ora, meu caro William, quem é o culpado de tudo que lhe tem ocorrido? Eu sempre tenho cumprido tudo que lhe prometi. Não quebrei a minha parte do pacto. Quem é o diabo nesta história? Quem matou a Senhorita Stantson? Quem degolou o Abade de Canterbury? Quem incendiou o Saint Paul? Eu? Não, William, você o fez, com a sua incredulidade primeiro, depois com a quebra do seu compromisso. E eu o avisei que as conseqüências seriam terríveis. E, ao final de tudo, William Delbury, você me chamou, lembra? Você poderia ter recusado tudo, e só teria pagado o preço da sua incredulidade inicial. E se não insistisse tanto na minha presença, talvez tivesse tido, da mesma forma, tragédias na vida, mas não as creditaria a mim, e sim, conformado e resignado, as atribuiria à Ele, com aquela expressão peculiar dos resignados: foi Deus quem quis assim.

- Por que sempre insiste nesta comparação absurda? Por que ousa sempre tentar colocá-Lo no mesmo patamar?

- Apenas uma forma de sempre lhe alertar a consciência, meu caro William. Uma batalha se trava na eternidade. Tenho que ter adeptos, não? Tudo é uma questão de referência e as minhas não têm sido muito bem trabalhadas, embora meus métodos não sejam tão diferentes.

- Chega! Você não vai me convencer que lhe devo ser servil e fazer de mim um instrumento do mal! É assim que engana aqueles que caem nas suas garras. Com esta lógica perversa que faz com que se perca a fé Nele e a credite à você! Dá poder aos homens para usá-lo através deles! O homem pode ter poder sem você, e pode suportar as maldades que maquina com a sua mente diabólica, para delas tirar proveito próprio. As tragédias do mundo são suas, tentado alquebrar a fé dos homens, na bondade divina. A resignação do homem, nada mais é que a garantia da sua fé. Há uma batalha sim, e você não será o vencedor ao final! Vade Retro, Satanás!

- Belo discurso, William, mas nada disto apaga o seu passado e o pacto que fez comigo. Você há muito tempo, optou por mim e não por Ele. Fez a sua escolha e, neste caso, William, o arrependimento não te absolverá a vida e nem te renderá a alma. Ainda nos veremos, William.

O cavalheiro colocou o chapéu, tomou a bengala e fez uma leve reverência em despedida.

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